Rio de Janeiro - RJ

Rodrigo Gerstner (Rio de Janeiro, 1976) é artista cênico profissional desde 1997 e professor licenciado em teatro desde 2004. Em 2013, lançou seu primeiro livro Inventário do Ócio (link para download gratuito da 1ª edição no final da página). Sol de Outono está no prelo, com lançamento pós-pandemia, ainda sem data definida. Participará da FLIP 2020 com o coletivo "Se tens um dom, seja!". É idealizador e gestor do coletivo de autores ESTADO POÉTICO.
Instagram: @rodrigo.gerstner
CETTE DANSE
(para Renato Vieira)
O que meus olhos veem,
meus pés dançam.
Trago pupilas em meu coração.
O que é mau, não vejo
sei que existe, mas nem
quero saber
e beijo o bem
que me move,
não só com lábios,
mas com todos os sentidos
despertos.
Eu danço para estar junto,
estar perto
de tudo aquilo que amo,
de tudo isto que sou.
Dancemos
não para esquecer, mas celebrar o risco
e lembrar que somos
este corpo, este tempo, este grito
sussurrado entre zilhões de estrelas.
Dancemos para celebrar o pó
e sacudir o pó
e relembrar quão sós
estamos entre zilhões de estrelas.
Dancemos para sermos
pois somos enquanto há dança!
PERTO DO QUE SOU
escrito para o espetáculo Malditos, da Renato Vieira Cia. de Dança
Sou como um corcel em carne viva,
corro para não sentir queimar o meu fulgor.
Tenho pernas que trotam para longe
porque é longe onde me encontro perto do que sou.
Maldito pelas bocas de muitos,
não as que beijei
nem as que comigo conversaram,
mas por todas que proferem maldades,
por aqueles que preferem insultar e ranger os dentes.
Maldito por quem cospe veneno
e não me aceita, não me engole.
Fico atravessado nas gargantas e nas ruas,
habitante das sarjetas e periferias,
convivo com os imundos, impuros, renegados.
É com eles que me afirmo e não lamento,
é deles a voz que dá alento
e sentido ao meu canto belo
e sofrido,
à minha dança leve
e dolorida.
Convoco agora a escória reluzente
em seus talentos e brios,
os vagabundos, as prostitutas,
viados, putas e seus filhos,
os favelados e os indigentes,
quem for canhoto, comigo venha
neste movimento.
Malditos e humanos somos.
Bendita gente.
SALVE
Salve-me daquilo que temo,
não do que desconheço,
mas da ignorância.
Não me salve da dor,
salve-me do sofrimento.
Salve-me do trágico e do épico.
Da Ilíada,
da Odisseia.
Salve-me de Dido,
salve-me de Eneias,
salve-me de Ésquilo, Homero, Virgílio.
Só não me salve de Camões.
Salve-me da peripécia
(seja latina, seja da Grécia),
da hamartia e do destino,
mas não me salve (nunca)
de minhas próprias mãos.
Salve-me dos mistérios
entre o céu e a terra.
Salve o meu verso pardo,
salve o meu choro,
salve o meu brado,
salve-me da inveja do Bardo,
e não salve a rainha da Inglaterra.
Salve-me do naufrágio
no mar das certezas,
da solidão da arrogância,
da inação.
Salve-me do que penso.
Salve-me do hermetismo,
da pompa, da verborragia.
Salve-me do eclipse,
da tangente, do seno
e de todo ceno da comunicação.
Da elipse
me salve
da zeugma
do pleonasmo
do hipérbato me salve
da anástrofe
de que tudo que é prolepse
assíndeto
sínquise
silepse
e principalmente chavão.
Salve-me da gramática
e do manual de redação.
Salve-me do certo e do errado,
da crítica e da condenação.
Porque hoje é o dia.
E só hoje.
Sem quaresma,
sem cinzas,
sem folia.
É no hoje que nasço,
que vivo, que morro.
É no hoje que acordo,
que soo
que desperto.
Neste dia que ouso
de tão longe chegar perto.
Salve-me do passado,
salve-me do futuro,
salve-me dos anos e das horas.
Salve-me do tempo.
Salve o agora!
ETERNO RETORNO
Há atividade no deserto
sob a areia que torra e esfola.
Há felicidade no exílio,
à sombra do desterro.
Há cumplicidade no ostracismo
– voluntário que seja.
Há medo no aconchego
e tristeza no banquete,
um desejo pela morte,
e alívio na desgraça alheia.
Há até má fé no dó
e prazer na dor
e gozo no estar só,
e pode haver mal no bem que concebemos.
Mas não existe a menor possibilidade
de voltar no tempo
nem desfazer um rumo
sem o percorrer de novo
com outro sentido.
O eterno retorno
ronda à espreita.
Vamos chamá-lo,
tenha certeza.
Vamos desejar
nosso bem ou nosso mal,
você sabe.
Será nossa dor.
Porque a dor é da vida,
amigos,
mas o sofrimento é opção.
Nas certezas da vida
há sempre um senão.
E o sentido da vida existe:
ela só corre numa mão.
Em frente, em frente.
Sempre.
O TEMPO QUE FOR
Descobri alegria.
Alívio por saber que havia,
oculta que fosse.
Do fosso da alma uma brecha
improvável rasgou
e de lá
da lama imunda
o mundo se mostrou outro.
Belo que seja.
E, sujas, as mãos escavaram pedras
negras de limo
– as unhas rotas como cascos.
A nesga de luz invade a treva,
em desvantagem a vence.
E vê-se a vida com os olhos
de retinas virgens: o verde,
o azul primário e o profundo,
a terra.
E o ar rebenta fresco no peito.
Respira-se!
Véus já não há. Vejo. Ouço. Sinto.
Certezas não tenho.
Sincero comigo digo:
“Espera, Rodrigo. Confia.
Ser apressado dissipa
essa brisa pueril.”
Difícil arte esta: crer
apesar das lembranças.
Mas, alegre por enquanto,
aguardo o tempo que for
pela boca em flor
desabrochando um beijo.
O teu.
BREVIDADE
O eu infalível
fora do limite,
o eu que não existe,
eu impossível.
Não vou dar valor à falta.
Tenho um corpo, veja.
Toque-me: é disso que sou feito.
Este volume, este peso, esta pele.
Eis-me.
Nem mais, nem menos, o mesmo.
O que sou agora.
É sempre no agora meu tempo
– até deixar de ser.
Então no quando eu não houver,
leia esta página e lembre-se.
E rasgue o corpo dessas ideias.
Será o confete para celebrar
que agora você vive,
ainda que ainda.
Lance no ar e celebre
a vida breve.
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